Criacionismo na Cultura Chinesa: Mitos, Filosofias e a Origem do Universo

: jul | 2025

Pangu e a Dança Cósmica: Desvendando o Criacionismo na China Antiga

Você já parou para pensar em como o mundo, o universo e tudo o que existe vieram a ser? Praticamente todas as culturas, desde os primórdios da humanidade, se debruçaram sobre essa questão fundamental, buscando respostas que transcendem a lógica e mergulham no reino do mito e da espiritualidade. Enquanto no Ocidente somos mais familiarizados com as narrativas abraâmicas ou as cosmogonias gregas, o Oriente, especialmente a China, oferece um caleidoscópio de mitos de criação tão ricos e complexos quanto sua própria história milenar. O criacionismo, em sua essência, não é apenas uma doutrina religiosa que defende a criação do universo por um ser divino. Ele é um reflexo da tentativa humana de entender sua própria existência, seu lugar no cosmos e as forças que regem a natureza. Na China, essas narrativas não se enumentam a um único texto sagrado ou a uma figura monolítica. Em vez disso, elas se entrelaçam em uma tapeçaria vasta e diversa de lendas, filosofias e tradições populares que, embora distintas, compartilham um fio condutor: a busca pelo começo. Vamos embarcar em uma jornada fascinante pelas profundezas do criacionismo na cultura chinesa. Vamos desvendar mitos antigos, conhecer figuras lendárias e explorar como essas histórias de origem não apenas explicam a formação do universo, mas também moldaram a filosofia, a arte e até mesmo a estrutura social de uma das civilizações mais antigas do mundo. Prepare-se para um mergulho em um universo de dragões cósmicos, deuses ancestrais e a dança eterna entre o Yin e o Yang que deu origem a tudo.
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Ilustração representando Gaia
Representação de Pangu (盘古), o primeiro ser vivo e arquiteto do mundo.

O Caos Primordial e o Ovo Cósmico: O Nascimento de Pangu

No coração de muitas cosmogonias chinesas está a ideia de um estado primordial de caos indiferenciado. Antes de qualquer coisa, antes mesmo da luz e da escuridão, havia um vazio sem forma chamado Hundun (混沌), uma sopa cósmica onde o Yin e o Yang ainda não haviam se separado. É desse caos que surge uma das figuras mais emblemáticas do criacionismo chinês: Pangu (盘古), o primeiro ser vivo e arquiteto do mundo. A lenda de Pangu é, talvez, a mais difundida e influente narrativa de criação na China. Imagine um ovo gigante, escuro e denso, contendo em seu interior o embrião do universo. Por dezoito mil anos, Pangu dormiu e cresceu dentro desse ovo. Quando finalmente acordou, ele percebeu a escuridão e o confinamento. Com um grito poderoso e um golpe monumental de seu machado, Pangu quebrou o ovo. E então, o impensável aconteceu. As partes mais leves e puras do ovo, o sopro divino, subiram para formar o Céu (Tian). As partes mais pesadas e turvas, a matéria terrena, desceram para formar a Terra (Di). Mas Pangu não parou por aí. Temendo que o Céu e a Terra voltassem a se unir e o universo retornasse ao caos, ele se posicionou entre eles, segurando o Céu com as mãos e pisando na Terra. Por outros dezoito mil anos, Pangu continuou a crescer, e com ele, o Céu e a Terra se separaram cada vez mais, solidificando a ordem cósmica. Essa imagem de Pangu, o gigante cósmico, é incrivelmente poderosa. Ela não apenas explica a separação dos elementos fundamentais do universo, mas também destaca o esforço colossal necessário para criar e manter a ordem. É um trabalho árduo, um ato de vontade e sacrifício. É incrível perceber que o mito de Pangu e o Taoismo estão profundamente ligados através da cosmogonia e do equilíbrio entre opostos. Pangu emerge do caos primordial (Hundun) — assim como o Tao, o princípio indescritível do Taoismo — e, ao separar Yin (terra) e Yang (céu), estabelece a ordem cósmica, refletindo a passagem do “Um para o Dois” descrita no “Tao Te Ching”. Sua morte e transformação nos elementos da natureza ilustram a interdependência Yin-Yang e o ciclo de retorno à unidade, conceitos centrais no Taoismo. Além disso, Pangu personifica a ideia de harmonia entre micro e macrocosmo, ecoando práticas taoistas como o Qigong, que buscam equilibrar essas forças dentro do ser humano. Enquanto outras tradições chinesas focam em ordem social ou espiritual, o mito de Pangu, como o Taoismo, celebra a dinâmica natural e a transformação contínua do universo.

Pangu, o gigante que nasceu do caos, nos legou uma lição eterna: criar é separar, sacrificar e transformar — pois até o vazio guarda o potencial de um mundo. — Do Tratado dos Começos, atribuído ao Mestre Kunlun (século III a.C.).

O Sacrifício Supremo: Pangu e a Formação do Mundo Físico

Após esse longo e extenuante trabalho de separação, Pangu, exausto, finalmente pereceu. Mas sua morte não foi um fim, e sim o ápice da criação. Seu corpo se transformou no próprio mundo que conhecemos. Cada parte de Pangu deu origem a um elemento da natureza:

  • Sua respiração se transformou no vento e nas nuvens.
  • Sua voz virou o trovão.
  • Seu olho esquerdo se tornou o Sol, e seu olho direito, a Lua.
  • Seu cabelo e barba deram origem às estrelas no céu.
  • Seu corpo e membros formaram as montanhas e as cordilheiras.
  • Seu sangue virou os rios e lagos.
  • Seus músculos e veias se tornaram as camadas de terra e as estradas.
  • Sua pele e cabelo deram origem à vegetação e às florestas.
  • Seus dentes e ossos viraram os minerais e as rochas preciosas.
  • Seu suor se transformou na chuva e no orvalho.
Cronos e Réia
Essa transformação é um dos aspectos mais poéticos e significativos do mito de Pangu. Ela estabelece uma conexão intrínseca entre o corpo do criador e o mundo criado, sugerindo que a própria existência do universo é um ato de autossacrifício divino. Não há uma criação ex nihilo (do nada) aqui, mas sim uma transformação de uma entidade primordial em todas as formas de vida e elementos naturais. É uma visão holística e orgânica da criação, onde o corpo do gigante se desintegra para dar vida a um cosmos vibrante e interconectado.

Nuwa: A Deusa Criadora da Humanidade

Se Pangu moldou o universo físico, outra figura divina é responsável por um dos elementos mais cruciais da criação: a humanidade. Nuwa (女娲) é uma das deusas mais antigas e veneradas do panteão chinês, frequentemente retratada com corpo de serpente ou dragão e cabeça humana. Sua história é um complemento essencial ao mito de Pangu, preenchendo a lacuna da criação da vida inteligente. A lenda mais famosa de Nuwa conta que, após a formação do Céu e da Terra, ela se sentia solitária. O mundo era vasto e belo, mas carecia de seres com quem ela pudesse interagir, que pudessem apreciar a beleza da criação. Então, Nuwa desceu à margem do Rio Amarelo e começou a moldar figuras de argila amarela, à sua própria imagem.

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Inicialmente, Nuwa esculpia cada figura individualmente em argila. No entanto, esse método era extremamente meticuloso e demandava muito tempo. Para acelerar o processo, ela teve uma ideia engenhosa: mergulhou uma corda na lama e, ao sacudi-la, as gotas que se desprendiam transformavam-se instantaneamente em seres humanos. Essa diferença nos métodos de criação explica, no mito, a origem das desigualdades entre os homens. Os primeiros humanos, moldados diretamente pelas mãos da deusa, eram mais nobres, sábios e destinados a posições de liderança, enquanto aqueles originados das gotas respingadas eram mais numerosos, porém menos privilegiados – uma alegoria que reflete as distinções sociais e intelectuais presentes na sociedade humana. Algumas versões do mito sugerem ainda que Nuwa teria soprado vida em suas criações, conferindo-lhes alma e consciência, enquanto os seres nascidos da corda recebiam apenas uma centelha divina menos intensa. Essa narrativa não apenas justifica as diferenças hierárquicas, mas também reforça a ideia de um destino moldado pelos deuses desde a origem da humanidade.

Nuwa e a Reparação do Céu: A Deusa Salvadora

A importância de Nuwa não se limita apenas à criação da humanidade. Em outra lenda fundamental, ela é retratada como a salvadora da civilização. Diz-se que o Céu e a Terra foram danificados durante uma grande batalha entre os deuses Gonggong (deus da água) e Zhurong (deus do fogo). O pilar que sustentava o Céu foi quebrado, causando uma inundação catastrófica e deixando um buraco no firmamento. Diante do desastre, Nuwa agiu com bravura e engenhosidade. Ela recolheu pedras coloridas de diferentes tons e as derreteu, usando a pasta resultante para reparar o buraco no Céu. Para sustentar o firmamento, ela cortou as pernas de uma tartaruga gigante e as usou como novos pilares. Além disso, ela reuniu juncos para absorver as águas da enchente e matou um dragão negro que estava causando estragos. Essa narrativa de Nuwa como reparadora e salvadora não apenas enfatiza sua benevolência e poder, mas também ressalta a ideia de que a ordem cósmica é frágil e pode ser perturbada. A deusa intervém para restaurar o equilíbrio, garantindo a continuidade da vida e da civilização. Ela é uma figura materna, protetora e uma heroína que assegura a sobrevivência da criação.
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O Imperador Amarelo e a Gênese Cultural

Além das figuras primordiais de Pangu e Nuwa, o criacionismo chinês também se manifesta através de lendas que explicam a origem da civilização, da cultura e das instituições humanas. O Imperador Amarelo (Huangdi), embora não seja um criador do universo no sentido cósmico, é amplamente considerado o ancestral de todos os chineses e o fundador da civilização chinesa.
Sua figura é envolta em mistério e lendas, sendo frequentemente atribuído a ele a invenção de uma infinidade de elementos essenciais para a vida humana:

  • A escrita: Seu historiador, Cangjie, é creditado com a invenção dos caracteres chineses, observando as pegadas de pássaros e animais.
  • A bússola: Essencial para a navegação e a guerra.
  • A medicina tradicional chinesa: Várias práticas e textos medicinais são atribuídos à sua era.
  • O calendário: A organização do tempo e das estações.
  • O arco e flecha, barcos e veículos: Invenções que transformaram a caça, o transporte e a guerra.
  • A sericultura (cultivo do bicho-da-seda): Sua consorte, Leizu, é creditada com a descoberta da seda.
  • A música e as artes: A criação de instrumentos musicais e formas de expressão artística.
O Imperador Amarelo representa a transição do estado primordial para a civilização organizada. Ele é a personificação do gênio humano, da inovação e da capacidade de transformar o ambiente para o benefício da humanidade. Se Pangu e Nuwa deram o palco e os atores, o Imperador Amarelo ditou o roteiro e as regras da peça da vida civilizada. Sua lenda reforça a ideia de que a cultura e a sociedade chinesas têm uma origem divina e um legado ancestral profundamente enraizado.

O Tao e a Criação: Uma Visão Filosófica

Enquanto os mitos de Pangu e Nuwa oferecem narrativas mais diretas sobre a criação, a filosofia chinesa, especialmente o Taoísmo, apresenta uma abordagem mais abstrata e metafísica do criacionismo. Para o Taoísmo, o universo não foi criado por um deus pessoal em um ato singular, mas sim por um processo contínuo e orgânico que emerge do Tao. O Tao, que pode ser traduzido como “O Caminho” ou “O Princípio”, é a fonte e o fundamento de toda a existência. Ele é inominável, indescritível e além da compreensão humana. No entanto, é do Tao que tudo flui. O Tao Te Ching, o texto fundamental do Taoísmo atribuído a Laozi, descreve a criação da seguinte forma:
O Tao deu à luz o Um; O Um deu à luz o Dois; O Dois deu à luz o Três; O Três deu à luz as dez mil coisas.
Nessa progressão, o “Um” pode ser interpretado como o caos primordial ou o potencial unificado. O “Dois” se refere à polaridade do Yin e Yang, os princípios complementares e opostos que governam o universo – o feminino e o masculino, a escuridão e a luz, a passividade e a atividade. O “Três” pode ser a interação desses dois princípios, dando origem a toda a complexidade do mundo, as “dez mil coisas”. Essa visão taoísta da criação é menos sobre um ato criador e mais sobre um processo de emanação e transformação. O Tao não “cria” no sentido de fabricar algo; ele é o processo criativo em si. O universo se desenrola organicamente a partir do Tao, seguindo seus princípios naturais de fluxo e refluxo, equilíbrio e harmonia. É uma cosmogonia que enfatiza a espontaneidade, a interconexão e a natureza cíclica da existência. Não há um “começo” definitivo, mas sim um desdobramento contínuo.
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Criacionismo e o Mandato do Céu: Uma Ligação Política

A influência das narrativas de criação na China se estendeu muito além do âmbito religioso ou filosófico, permeando até mesmo a esfera política. O conceito de “Mandato do Céu” (Tianming) é um exemplo primordial dessa conexão.
O Mandato do Céu era uma doutrina política e religiosa fundamental na China antiga, que legitimava o poder do imperador. Segundo essa crença, o Céu (Tian), que era visto como uma entidade cósmica benevolente e justa, concedia ao governante o direito divino de governar. O imperador era o “Filho do Céu”, e seu governo era considerado justo e legítimo enquanto ele mantivesse a harmonia e a ordem no reino. Essa doutrina estava intrinsecamente ligada às concepções de criação. Se o Céu e a Terra foram formados por um grande ato cósmico (como no mito de Pangu) e a humanidade foi criada por uma deusa benevolente (Nuwa), então a ordem celestial tinha um interesse direto na prosperidade e no bem-estar do mundo humano. Um imperador justo e virtuoso era um reflexo da ordem cósmica, enquanto um governante tirânico e incompetente seria visto como uma violação dessa ordem, levando o Céu a retirar seu mandato e transferi-lo para uma nova dinastia. Assim, os mitos de criação serviam como um alicerce ideológico para a estrutura política, conferindo sacralidade ao poder imperial e ao mesmo tempo impondo uma responsabilidade moral ao governante. Era uma forma de garantir que o poder não fosse arbitrário, mas sim guiado por princípios celestiais de justiça e harmonia.

A Diversidade dos Mitos de Origem Regionais

É importante notar que o criacionismo na China não é um corpo homogêneo de crenças. Além dos mitos mais conhecidos, como os de Pangu e Nuwa, existem inúmeras outras narrativas de criação regionais e de minorias étnicas que enriquecem a tapeçaria cultural chinesa.

Por exemplo, nas tradições de algumas minorias étnicas, como os Miao e os Yi, as histórias de origem frequentemente envolvem a emergência de seres humanos de cabaças gigantes, ou a intervenção de animais totêmicos que ajudam a moldar o mundo. Em algumas lendas, a criação não é um ato de um único ser, mas sim um processo colaborativo de várias divindades ou heróis.

Essa diversidade reflete a vasta extensão geográfica da China e a miríade de culturas que a compõem. Embora compartilhem certas semelhanças temáticas – como a emergência do caos, a separação dos elementos e a criação da vida –, cada uma dessas histórias oferece uma perspectiva única e local sobre as grandes questões da existência.

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O Criacionismo Chinês na Atualidade: Legado e Reverberações

Mesmo na China moderna, onde o ateísmo e o materialismo dialético são as doutrinas oficiais, as antigas narrativas de criação continuam a reverberar na cultura popular, na arte, na literatura e até mesmo na linguagem cotidiana. Pangu e Nuwa, por exemplo, são figuras frequentemente retratadas em obras de arte, desenhos animados, filmes e jogos. Suas histórias são contadas e recontadas em livros infantis e programas educacionais, servindo como uma forma de transmitir valores culturais e uma compreensão da ancestralidade. A frase “Abrir o Céu e a Terra” (Kai Tian Pi Di), que faz referência ao ato de Pangu, é uma expressão comum usada para descrever o início de um novo empreendimento ou uma mudança monumental. O Taoísmo, com sua visão de um universo em constante fluxo e transformação, continua a influenciar o pensamento chinês, especialmente no campo da medicina, da arte e da espiritualidade pessoal. Os princípios do Yin e Yang são onipresentes, usados para explicar desde o funcionamento do corpo humano até as complexidades das relações interpessoais e os ciclos da natureza. Mais do que meras histórias antigas, as narrativas de criação na cultura chinesa são um testemunho da profunda curiosidade humana sobre nossas origens. Elas oferecem não apenas explicações sobre como o mundo veio a ser, mas também insights sobre a cosmovisão chinesa: uma visão de um universo orgânico, interconectado, onde o equilíbrio e a harmonia são fundamentais. São histórias que nos lembram da nossa própria origem, da nossa ligação com o cosmos e da nossa responsabilidade em manter a ordem e a beleza que foram criadas. Ao explorarmos essas lendas, não estamos apenas estudando mitologia, mas sim desvendando as camadas mais profundas de uma civilização que, por milênios, tem buscado compreender seu lugar no grande teatro cósmico. E nesse sentido, o criacionismo na cultura chinesa é um portal para um universo de sabedoria ancestral que continua a inspirar e a fascinar até os dias de hoje.
Fontes: